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As gentes do mar também têm cicatrizes

  • tmpego
  • 17 de jan. de 2021
  • 2 min de leitura

Todas as pessoas são obrigadas a crescer. É inexorável. Cada corpo vai esticando de forma diferente, umas pernas mais compridas, outras mais largas, um nariz mais adunco, um olhar mais rasgado, um sorriso mais circunspecto. É o tempo que vai esculpindo a matéria da maneira que ele pretende; toda ela está à sua mercê. No entanto, no meio do bando, há pessoas que seguem um conjunto de regras que lhes orientam os voos para uma redutora demanda de subsistência e de proteção, um voo ritmado numa densa nuvem negra, em que se destaca um pássaro e depois outro, e logo a seguir outro (sem se saber exatamente se a decisão de quem voa primeiro já estava predeterminada por eles ou se era algo já instintivo); e depois há outras pessoas que vão para além da linha de uma só cor e esticam, mas mantêm a espantosa vontade de guardar sonhos no bolso, tirando-os quando consideram que é a altura certa. Nestas existe um entusiasmo suspenso no meio da barriga, ali pronto a saltar quando menos esperam, fazendo com que os olhos brilhem sem controlo e a boca se mova num desenho que vem desse local difícil de localizar, algures entre as costelas e o diafragma.

Ela perguntava:


- Então e agora ainda voa?

- Voar, voar, já não voo…


Tinha-se esquecido. Ele tinha aprendido que o agitar vigoroso das asas lhe permitia a ascensão em direção ao que lhe provocava frémito em todo o seu corpo, mas tinha-se esquecido. E a pergunta continuava e persistia e procurava, procurava aqueles que ainda não tinham esquecido, que tinham guardado sonhos no bolso, prontos a tirá-los aquando da altura certa.

Ela perguntava:


- Então e agora ainda voa?

- Voar, voar, já não voo…

- Não voas dessa maneira que pensaste, mas podes reinventar esse voo!


Ei-la que se juntava essa terceira voz, aquela que escutava, escondida com sorriso de silêncio, com sabor a uma esperança fresca, onda que beija a areia, plena de conchas e búzios partidos. As gentes do mar também têm cicatrizes, no entanto, são permanentemente bafejadas pela maresia que lhes lembra os passados inteiros e prometedores e por isso elas também recriam esses sonhos e reinventam-nos, tirando-os do bolso quando consideram que é a altura certa.

 
 
 

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