A arte de estar só e olhar para todos como caminhantes
- tmpego
- 20 de fev. de 2021
- 3 min de leitura

“Quando se começa como caminhante, nunca mais se quererá parar.”
Esta frase ouvi-a eu a primeira vez que decidi entrar na aventura de fazer o Caminho de Santiago. Comecei em 2013 e, desde aí, nunca mais parei. Mesmo que não seja possível fazer estes trilhos, arranjo sempre uma forma de me embrenhar no meio das árvores, no segredo das flores, nas conversas madrugadoras dos pássaros, nos murmúrios das águas, nos perfumes mornos da terra. Apesar de ir acompanhada nestes caminhos de quase sempre 8 a 10 dias, compreendi o significado de estar só pois, na verdade, apenas cada um de nós conhece os balbuciares do corpo.
O Caminho foi um desafio em que me lancei, acima de tudo porque queria pôr-me à prova, descortinar até onde conseguia ir, dado que nos últimos anos o corpo me começava a indiciar preguiças. Alguém um dia me disse “Nós só temos tempo para aquilo que queremos!” e, apesar de não ter concordado com essa afirmação, compreendi, um pouco mais tarde, que essa pessoa tinha razão. E foi o Caminho que me abriu para tantos outros trilhos, para outras formas de perspetivar a vida, de ver a natureza, de compreender os outros. Ali éramos todos iguais. Quando se encetava um diálogo, nunca ninguém sabia o que a outra pessoa representava socialmente, quais os seus múltiplos papéis, a não ser que esta os revelasse. O curioso é que, nestes caminhos, o que era interessante e profundamente belo era precisamente a preciosidade das conversas interrompidas. Nunca sabíamos se um diálogo que tinha começado no primeiro dia, numa fila para o Albergue, iria continuar uns quilómetros mais à frente numa subida pedregosa, confiando que aquela conversa seria a força motriz que nos iria ajudar a escalar a montanha. Disse, um dia, Gonçalo Cadilhe num dos seus livros de viagem “São mais as semelhanças que nos unem do que as diferenças que nos separam” e posso dizer que quando envergamos a pele de caminheiro é precisamente isso que sentimos, pois, aquilo que pretendemos ao final de um dia de caminhada é refrescar, nutrir e descansar o corpo. As diferenças talvez se prendam com as motivações de cada um naquele Caminho e com as formas de o entender, de se envolver nele, porque cada caminheiro é uma pessoa e cada pessoa possui a sua unicidade.
E como trago o Caminho na minha vida?
O Caminho é a minha vida. Agora que o iniciei, tal como dizia o companheiro espanhol, é impossível desligá-lo dos meus gestos quotidianos. A beleza da contemplação da paisagem consigo repeti-la na observação de quem amo ou do que amo; o calcorrear dos vários tipos de caminhos que pisamos consigo senti-lo nas diversas situações que se me vão deparando; a confraternização e coesão de um grupo de pessoas que percorrem os trilhos connosco plasma-se na relação com o outro, aquele que fica e escuta, aquele que entende a união como força indubitável para a criação de algo material ou imaterial. O Caminho é uma metáfora. Muito do que se experimenta naquela viagem encontra-se depois no quotidiano com roupagens diferentes.
E, de súbito, encontro-me, encontro-nos e entendo a possibilidade de vias que posso percorrer com a profundidade que eu almejar.
Parece-me importante partilhar algumas das experiências que tive no passado que, de alguma forma, influenciaram profundamente o meu caminho. Em todas elas fui-me reconstruindo, tal como se esculpisse uma obra que eu sabia, talvez um dia, se pudesse voltar a remodelar, sentindo crescimento, pois somos obra em permanente transformação, inacabada, tal como a icónica Sagrada Família de Gaudí.
A verdade é que todas as experiências nos moldam, mas todas aquelas que abanam a nossa estrutura e nos obrigam a repensar hábitos e formas de perspetivar a vida talvez sejam as que proporcionam a maior transformação. Para que essa transformação aconteça, compreendo agora a necessidade da minha disponibilidade para me questionar, para olhar para o passado e compreender o que preciso de desconstruir para ir em frente no caminho de outras edificações. E quando falo de disponibilidade, falo de tempo para isso, de abertura para escutar perspetivas diferenciadas, de experienciar outras posturas na vida, tal qual acrobata circense. Encaro, assim, esta transformação como sendo algo de natural, dado que somos seres em permanente mutação, sujeitos a adaptações constantes. O termos uma consciência mais ativa é um fator que nos pode ser muito útil na nossa vida pois traz-nos uma maior clareza nos pensamentos e em posteriores decisões.
Assim, uma viagem de dias no âmago da natureza proporciona-nos o tempo para saborearmos a doçura suculenta de um pêssego numa manhã de canícula; a escuta atenta dos sinais do outro, que se espalham no seu rosto, mas que não são verbalizados; o saborear morno de uma conversa de pés descalços num tanque de pedra; o saber acompanhar o outro na sua alegria, no seu cansaço, na sua inquietude, no seu espanto.
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