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Dançar a Misa Criolla com Nanni Kloke

  • Foto do escritor: tmpego
    tmpego
  • 23 de jun. de 2024
  • 4 min de leitura

A roda continua a alargar. Hoje de manhã apercebi-me da quantidade de seres que têm dançado comigo na roda. Entendo, então, que à medida que vou caminhando, o círculo se vai expandindo em pequenos círculos uns dentro dos outros. Aos poucos, cada ser vai entrando nos círculos e depois pode ficar algum tempo, como também pode sair. Uns vão e outros ficam e vão acompanhando o movimento da vida. E assim vamos crescendo e expandindo até ao infinito.



Regressei neste mês de junho ao Vimeiro, à Quinta das Irmãs. Revi a querida amiga Cláudia de Jesus, conheci a bailarina, coreógrafa e focalizadora de danças circulares Nanni Kloke e também outras pessoas amantes das danças circulares.

A Quinta das Irmãs é um lugar casa, com pessoas casa. E dançar em círculo, desde há já algum tempo, começa a ser também, para mim, uma casa, onde me sinto alegre, conectada e enraizada, juntamente com as pessoas que também fazem parte da roda. É um momento sagrado de encontro connosco e com outras pessoas que, tal como disse, vão entrando para dentro de outros círculos na nossa vida. E assim se vão tecendo os laços; e assim se vai cozinhando, em luz branda, este conhecimento que depois vai iluminando vários recantos do nosso corpo até este ser, ele próprio, farol.



Desta vez encontrámo-nos para dançar a Misa Criolla, uma composição litúrgica criada pelo argentino Ariel Ramírez e que integra elementos tradicionais da missa católica como o Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e o Agnus Dei, mas com inspiração nas raízes culturais dos povos e culturas folclóricas latino-americanas.

Novamente de mãos dadas, sentindo os corações enlaçados à volta da luz que nos guiou sempre estes dois dias. Para mim é desafiante escrever sobre esta experiência de meditação em movimento, pois por vezes as palavras não são suficientes para exprimir o que o corpo vive.

O círculo desenhava-se naquela casinha de madeira protegida pelas árvores e pequenos animais da Quinta das Irmãs. Os pássaros acompanhavam o ritmo das músicas, assim como as abelhas a dançar em pequenas rodas à volta das flores que surgiam por debaixo da casinha.

“O que procuram quando chegam a um lugar?”, perguntava Nanni olhando-nos curiosa, soltando, por vezes, aquela gargalhada brincalhona tão característica e contagiante a ecoar pelos socalcos da quinta. O despertar de tantos lugares do ser, um acordar da alma, da mente, do corpo para perguntas que raramente se encontravam connosco ao longo de um dia. Acendemos uma luz no interior do nosso corpo e iniciámos uma viagem, de vela ou lanterna nas mãos, a perscrutar o adormecido. Lembrei-me das minhas aulas de ballet, quando nos intervalos, nós vestidas de bailarinas, com os tutus dançantes, soltávamos o corpo em saltos felizes e leves, de sorrisos francos desenhados nas faces de meninas. Assim era Nanni também e nós voltámos a recordar-nos desses tempos. Despertámos sonhos, alegrias, abrimos caminhos com uma pá por onde nem sequer tínhamos pensado enveredar e fomos, juntas, saltitantes.



Nascemos novamente. No círculo, sentimos a Misa Criolla e toda a sua polaridade, entre momentos densos, desesperantes de sombras que ainda nos pesavam e momentos de felicidade pura em que éramos ondas, ora para cima ora baixo, numa velocidade estonteante, à volta da luz, que nos guiava e nos apontava a nossa presença.


Senti-me desafiada a esboçar fluidez, quando por vezes a rigidez ainda me habitava e fi-lo acompanhada, apoiada por tantas pessoas, cada uma com o seu desafio. Transformar a sombra em luz. E assim foi com o corpo ora em posição de oração, ora de reverência ao sagrado, ora de celebração pela alegria de viver e pelo florescimento do semeado em nós. Batíamos o pé à dor e acamávamos a nossa semente, plantada com amor na terra quente do nosso corpo e dançávamos, dançávamos naquele infinito cósmico que expandia cada vez mais. Nesta movimentação alquímica reconciliávamo-nos com histórias feitas de tempo, aceitando-nos como seres humanos com as suas particularidades. Permitimo-nos pausar e respirar, escutando a brisa e o calor do sol nos nossos rostos. Deixamos o coração falar e o corpo seguir os ritmos que apeteciam. Ouvimos os segredos da natureza, adivinhando as formas das nuvens e celebrando os murmúrios da terra e, nessa gratidão de existência, caminhávamos em paz, conectadas, trazendo a luz em conjunto, sabendo-a em nós e lançando-a também para o multiverso.



Celebrar este processo de transformação, através da Misa Criolla, guiadas pelos passos de Nanni Kloke é realmente uma experiência profunda, por essa vivência do movimento interior e exterior, dessa ligação constante entre o céu e a terra, no convite à contemplação das nossas crenças. Criamos na forma dançante um movimento uno luminoso.

Vimos de lugares de diversidade e habitámos por momentos a ciclicidade da vida e uma jornada, em reverência a nós, aos outros, ao Todo, de transformação profunda do ser. Nesta contemplação em movimento, saudamo-nos, em presença, e dançamos a vida, abrindo as entranhas da interioridade, tecendo luz na sombra, em conjunto, no ritmo dos corações.


O meu profundo agradecimento a Nanni Kloke, à querida Cláudia de Jesus, às companheiras da roda e a quem já dançou comigo na grande roda da vida


“entrego-te, sol,

a dança de um corpo

semente

a abandonar a rigidez na sombra

e acolho a germinação

nos pés raízes,

mescla de húmus, seiva, sangue

contemplo com tempo

vagar

a força do broto

promessa

a empurrar as fronteiras da terra

parto

traços de luz


Teresa Pêgo


Fotografias: Cláudia de Jesus





 
 
 

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