Mover e Expressar o Corpo na Terra do Inacontecível
- tmpego
- 1 de mai.
- 4 min de leitura
Foi na Herdade do Rio, em Alcochete, que o inacontecível teve lugar.

Pouco a pouco, um grupo de pessoas reunia-se debaixo de uma rua com sobreiros e restos de edifícios em ruínas. Durante a espera de uns e de outros, dava-se a conversa sobre o lugar, interrompida pelas idas e vindas de um velho cão curioso, que habitava nas proximidades. Foi por entre árvores, sorrisos e conversas cruzadas que conheci a Ema Alba Lobo, uma mulher natureza de longos cabelos negros desobedientes, olhos largos presentes e um sorriso abraço.
Desde sempre que senti um apelo das ruínas, dos vestígios de vida nos lugares e Ema fez-nos esse convite, de imergir nos resquícios de pedra daquele conjunto de edifícios dos séculos XIX e XX.

As Oficinas do Inacontecível, segundo a Ema têm um objetivo. Tal como a própria referiu na nossa conversa, no Podcast Caminhos Criativos.
“As oficinas do inacontecível estão integradas num projeto de criação artística e que tem como centro um canal que esteve em projeto ao longo dos anos (250 anos) e que nunca se concretizou e a ideia era ligar o rio tejo ao rio sado. (…) uma das ideias é percorrer esse território com quem quiser participar e atribuir novos significados àquilo que vão vivendo nesse espaço (…) a ideia é que nestas oficinas aconteçam coisas que nunca aconteceram (que se calhar seriam muito improváveis de acontecer se nós não nos encontrássemos todos) e trabalhar sobre esta alteridade que vem no olhar de cada um.”
Um tijolo de cortiça viajou connosco ao longo de toda a oficina e fomos descobrindo várias maneiras de nos relacionarmos com ele: como ele nos afetava, como poderíamos estabelecer um diálogo com ele, entre o nosso corpo e o objeto, como ele se entrelaçava com a paisagem e também como podíamos nós servirmo-nos dele para estabelecer teias com os outros participantes do grupo.
Num antigo campo de futebol abandonado, repleto de flores silvestres, encontrámo-nos. Fechámos os olhos para a paisagem externa e mergulhámos na nossa paisagem. Pausa. O ar viajou por dentro de nós de forma morosa, iluminando cada canto do nosso corpo, as paisagens mais recônditas eram agora vistas. Esboçávamos formas no ar com o nosso corpo e ele ficava marcado ali naquele lugar. Observávamos as reentrâncias na paisagem, os espaços vazios e o corpo era pincel. Os corpos bailavam no lugar ao som da única música ouvida naquele momento, a brisa fresca nas copas das árvores e nos matos floridos. Aquela paisagem antes usada para outros fins, agora mexia-se lentamente ao sabor do vento da manhã e ia-se transformando aos olhos de cada um dançante, criávamos olhares, mundos inesgotáveis dentro das nossas retinas.
A Ema escutava as nossas histórias a expandir-se no ar e lançava-nos convites para tecermos narrativas uns com os outros, deixando entrar o objeto de cortiça. Demos-lhe vidas imensas, atirando-o ao ar, bailando com ele até o imaginarmos como bola e, os nossos companheiros de grupo, como amigos de longa data com quem jogávamos, reavivando memórias de infância. O corpo movia-se e as máscaras caíam. De repente entrávamos no mundo uns dos outros, saboreando o sabor da presença espontânea, do lugar genuíno que pintávamos coletivamente. Aquela obra imensa naquele campo de futebol abandonado foi única e irrepetível, fruto da nossa vontade e disponibilidade para a exploração conjunta. No meio de risos, dançávamos, sendo o paralelepípedo de cortiça o elo que deslizava louco por todas as partes do corpo de cada um. Não havia certo nem errado, apenas a experimentação infinita de poses corporais em presença com o outro tendo como foco o objeto pertencente também àquela paisagem. Tornou-se depois novamente elemento das nossas interações como atores, testemunhas e operador de câmara. As histórias surgiam na espontaneidade da locomoção e ali vimo-nos cada vez mais perto, reconhecendo-nos, testemunhando as nossas vulnerabilidades, loucuras e alegrias.
Habitámos depois as ruínas e fizemos delas nossas casas. Criámos, cada um à sua maneira, respeitando também a sua forma de expressão única, toda uma envolvência íntima com o espaço que nos acolhia e também os outros que nos visitavam.

E era assim que nos conhecíamos, que nos conectávamos profundamente ao escutarmos a história das intimidades que desenhávamos. Aproveitávamos o gotejar de fontes escondidas e deixávamo-nos embalar pelos corpos personificados das casas sem teto e sem janelas. Molhávamos os pés e, de joelhos no chão, estendíamos os ouvidos, em reverência, à escuta das paisagens internas de cada um.
Entregávamo-nos.
Da ruína nascia a força da história íntima e vulnerável, entrelaçando-se em conjunto.
O que precisa nascer
tem a sua raiz em chão de casa velha
Adélia Prado
Mesmo na hora da criação individual, sentíamo-nos perto, encostados nas esquinas das paredes periclitantes, grávidas de ecos e histórias, como se as pedras ouvissem os nossos corações aparentemente separados e nos aproximassem ainda mais, nessa telepatia feita de pó de pedra e respiração. Um mar de braços, de olhares, de risos, de corpos dançantes a respirar construíram um epílogo gravado na película, prometendo regressos.
Teresa Pêgo
Fotografias: Fernando Brito e Ema Inácio
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