O Caminho vai sempre dar aos Afetos
- tmpego
- 6 de mar. de 2021
- 4 min de leitura

I.
A orquestra dos sons metálicos das máquinas invadia a sala retangular, onde a conversa seguia entusiasmada. Depois, aquela orquestra parou para dar lugar à suavidade hipnótica de uma melodia que embalava, prenunciando o início de uma aula de ioga para livrar os trabalhadores da empresa das dores físicas e psicológicas do trabalho repetitivo. Ali, tudo era som, e a existência do silêncio era uma miragem. Na sala onde eu estava com os formandos e onde decorria a formação sobre comunicação, continuei a conversa, que prosseguia animada, e procurei empurrá-la para os livros. Para além dos cadernos, dos manuais dentro de pastas de papel, do estojo com canetas multicolores e da usual mochila, trazia também um saco de pano recheado com alguns dos livros de que gostei mais. Pu-los em cima das mesas que se juntaram com expectativa.
Para que serviam os livros ali naquele contexto? O que poderiam fazer com os livros, já que trabalhavam diariamente com máquinas e, diziam muitos, não tinham tempo para ler, nem mesmo tinham essa vontade ao final de um dia, com o corpo moído de ruídos ritmados e ensurdecedores?
Estas eram as perguntas que se faziam em silêncio e depois me faziam, por entre esgares de sorrisos. Primeiro, o livro aproximou-nos, dizia eu, mostrando a diferença na estrutura da sala. Algo praticamente impensável no dia a dia de cada um, estavam todos próximos, sentados à volta das mesas juntas num retângulo e, para grande espanto de todos, mexiam em livros, folheavam-nos, riam-se com vontade e sentiam ali alguma familiaridade e espaço para falar, mesmo que tivesse sido o livro o mote para essa conversa. E, curiosamente, do livro se ia parar ao trabalho, às relações interpessoais em contexto laboral, à necessidade de criação de espaços para se falar “destas coisas” e “da vida”, segundo alguns. Segundo, o livro traz um tema de conversa, enriquece-o e expande-o, continuava eu, com entusiasmo. Acho que o sentiam. E digo isto, porque depois daquele momento de proximidade entre colaboradores que não interagiam assim com tanta frequência, dado o facto de trabalharem em setores diferentes, quando havia alguém que falava sobre um livro que também me interessava, logo se prestava a emprestá-lo. O entusiasmo é contagioso. Percebi, mais tarde, que algumas pessoas dali daquele círculo, ou retângulo (talvez seja mais preciso) recomeçara a ler. Porque aquele momento lembrou-lhes a infância e o que significava também ser-se humano; porque aquele momento recordou-lhes a importância de se ler histórias em voz alta, da identificação com os heróis e com as suas ações, da companhia que eles lhes facultavam, aquando da leitura da história. Terceiro, o livro trazia com ele os afetos, porque aproximava as pessoas, porque as fazia identificarem-se com as personagens e situações narradas, porque fazia com que eles quisessem aprofundar os afetos. Por mais que eu trouxesse outros temas para as sessões, tudo ia sempre desaguar às relações interpessoais e aos afetos.
II.
Sophia de Mello Breyner decidira aparecer na sala. Em círculo, de livros na mão, os jovens adultos liam o “Rapaz de Bronze”. Cada um interpretava a voz de uma flor, tal como a poderia imaginar. Esse desafio, já de si, era bastante poderoso porque, tendo em conta as suas vivências e perceções da sociedade e da realidade onde viviam, associavam um tom de voz a uma orquídea, a uma flor de muguet, a um gladíolo. Embrenhavam-se, entre risos divertidos e vergonhas, no pequeno bosque do jardim onde decorria a festa noturna das flores e dali até começarem a falar de afetos foi muito rápido. Não importava qual fosse o tema, o certo é que, passado algum tempo, aquele caminho do pensamento ia ter aos afetos. Mesmo que se falasse de tecnologia, de ciência, de viagens, por algum motivo os afetos eram trazidos àquela roda de reflexão. Também não importava a faixa etária. O certo é que tudo, de alguma maneira, ia dar aos afetos, à forma como cada um sentia aquele tema.
Dizia-lhes muitas das vezes para saírem detrás das mesas e se aproximarem, em círculo, uns dos outros para, no meio da sala, poderem agarrar num novelo e falar sobre os seus interesses, passando-o depois a outro, ficando sempre a agarrar um fio, até a teia se materializar, ali, bem à sua frente, e perceberem que, de repente, estavam todos bem mais próximos e conectados. Por vezes, havia uma certa resistência para sair detrás da mesa, que era o escudo que os protegia de um possível desconforto que poderiam sentir aquando da transmissão da sua mensagem. Por isso, de vez em quando, o espaço despenteava-se e as mesas moviam-se umas contra as outras para que as ideias também se abraçassem. O habitual lugar por detrás de uma mesa deixava de existir para deixar passar corpos que falavam, se expressavam e se ligavam por fios invisíveis feitos de afetos.
III.
E poderia agora contar inúmeras situações vivenciadas, enquanto professora e formadora. O facto é que quanto mais escutava os formandos, independentemente da sua faixa etária, mais me apercebia que os seus interesses se prendiam sempre com as relações afetivas, fosse o palco a empresa, a escola, o jardim. Não importava o espaço onde se encontravam, o que importava era falar dos afetos. E, na verdade, também os afetos levavam a uma interiorização mais significativa dos conteúdos dos programas e referenciais que tinha de ministrar. Esta conversa sobre os afetos surgia mais facilmente quando estava presente a escuta, quando os formandos se deslocavam para espaços mais abertos, quando havia a realização de atividades que tivessem as artes à mistura, fosse essa arte a literatura, a escrita, a fotografia, a expressão plástica, o movimento, como por exemplo uma dança de roda. Depois de uma caminhada no jardim ou de uma dança de roda, depois da pele se tocar e dos corações despertarem o corpo, tudo era absorvido com outra avidez e com outro interesse, mas era indubitável a proximidade entre todos os participantes e a vontade de partilhar o que os unia, a teia relacional, os afetos.
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