Posso brincar?
- tmpego
- 20 de mar. de 2021
- 7 min de leitura

“(…) Porque continua a ser vedado ao adulto o prazer de brincar, de jogar e de divertir-se em tudo o que faz, produz e cria? Porque será que a capacidade criativa, característica que nos diferencia dos animais, surge em criança, mas depois vai adormecendo até ficar, na maioria dos casos, completamente inibida na fase adulta? (…)”
Bucho, João Luís, “As terapias expressivas e o barro – espelho do corpo e da alma”, Chiado Editora
Será que agora que cresci deverei brincar? Será que agora que passei os 18 anos, há já alguns anos, poderei continuar a sonhar e a fazer amigos e a juntar-me com eles e fazer jogos, a rir às gargalhadas sem porquê, a correr na praia em perseguição à seriedade quieta das gaivotas que rapidamente esvoaçam céu adentro? Será que poderei continuar a brincar ao faz de conta, poderei imaginar cenários sem qualquer filtro, só porque dentro da minha cabeça existem impossibilidades que se transformam em possibilidades? Será que poderei usar da brincadeira no local onde trabalho, com as pessoas que me rodeiam? Será que poderei usar o brincar a estruturar as minhas sessões de formação, a preparar as minhas reuniões, durante uma sessão? Como poderei usar essa brincadeira nas minhas sessões e será que isso não me vai desacreditar enquanto formadora/professora?
Quando éramos crianças brincávamos horas a fio, imersos num relógio sem ponteiros, num tempo sem tempo, a olhar para o fio quente de sol feito de pontinhos brilhantes a apontar diretamente para a casinha de lego recentemente reconstruída; levantávamo-nos de madrugada e cheirávamos o ar fresco da manhã pousado na terra e sucumbíamos às sugestões da nossa mente, ao olharmos para o sombrio quintal do vizinho, repleto de pontos de luzes presentes apenas na nossa fértil imaginação; sentíamos a possibilidade da surpresa ao longo de todo o dia; pegávamos na bicicleta e olhávamos para os caminhos e transformávamo-los noutros caminhos ainda mais frondosos, coloridos, habitats de outras gentes, com outras formas, outras línguas, sorrisos e cores. Onde reside agora esse entusiasmo que nos faz perder horas a fio dentro do universo imaginário, mesmo que com outros que, tal como nós, estão perdidos nesse universo, à margem das regras sociais? O brincar, onde está? Não me refiro àquele brincar que julga as nossas roupas, o nosso cabelo pintado de azul, a nossa nova bicicleta rosa pink, e não é aquele brincar que diz “estou a brincar”, mas no fundo está a falar muito a sério, por detrás dessa máscara com um sorriso falso que escapou. Falo do brincar que não julga, mas que inventa e imagina “E se?” por todo o lado.
“(…) Se o homem deixar de imaginar, trabalhar, evoluir, criar, deixará de haver tempo, mundo, história (…) Por isso, imaginar-se, criar-se e perpetuamente recriar-se, criando e destruindo mundos, não é um simples adorno (…) mas sim o coração da existência, a essencialidade da sua própria essência. (…) Se não houver imaginação criadora, hominização, há necessariamente repetição, regressão, em vez de progressão verdadeiramente humana. (…)”
Bachelard, Gaston, “L’air et les songes”
A importância do brincar
“(…) A civilização é racionalista, separa-se a razão, dos sentimentos e das emoções. O saber objetivo, a racionalidade, tornou-se o valor básico da moderna Sociedade. A verdade científica ocupa hoje o lugar ocupado pela verdade teológica na Idade Média. Esta é a lógica que rege a moderna Sociedade Industrial, cada vez mais fechada sobre si mesma, na qual os indivíduos devem produzir num esquema racionalista, sem deixar as emoções e os valores pessoais interferirem no processo. Somos educados desde pequenos a não deixar transparecer nem tão pouco confiar nos nossos sentimentos, a sermos racionais e concretos. Em consequência, as atividades lúdicas e expressivas são afastadas do nosso dia-a-dia, sendo substituídas pelo trabalho não criativo e mecânico. (…)”
Bucho, João Luís, "As terapias expressivas e o barro - espelho do corpo e da alma", Chiado Editora
O ato de brincar sempre foi considerado como secundário, especialmente na fase adulta, porque esta fase é um momento de grande responsabilidade, não nos deixando tempo livre. Como não é valorizado pela sociedade, algumas pessoas, à medida que o tempo avança, até se esquecem do que significa realmente a palavra, rendendo-se à seriedade do ser-se adulto. Mas então para que poderá servir o brincar no nosso quotidiano? Tem havido muitos estudos à volta deste tema, nomeadamente pelo psiquiatra Stuart Brown, fundador do National Institute for Play, e tem-se descoberto que, na realidade, a brincadeira melhora a qualidade de vida dos adultos e que a confiança é estabelecida a partir do brincar, através por exemplo do tom de voz, dos gestos, do jogo fisionómico e, ao longo do nosso crescimento, tudo isto se vai esvanecendo. E se todos nós conseguíssemos manter essa parte infantil na fase adulta? Stuart Brown chama-lhe “neotenia”. A brincadeira traz felicidade e contribui para a solução de problemas, promove a criatividade, o sonhar acordado (chamado em inglês de daydreaming), e as relações interpessoais. Facilita o aprofundamento das relações entre aqueles que não se conhecem bem e promove a cura. Pode, sem dúvida, levar-nos a lugares inimagináveis, acabando por nos tocar de forma profunda, se estivermos abertos a isso.
“(…) É através da imaginação criadora que logramos descobrir o coração das coisas para continuar a encontrá-las, a conhecê-las, a sublimá-las.(…)”
Gaston Bachelard, l’Air et les Songes
E se estivermos bem atentos, penso que muitos de nós já o fizeram, por exemplo, com os seus filhos, ou com filhos de amigos, ou com filhos de familiares. Poderemos ter participado em jogos de mesa em que tivemos de apanhar minúsculos sushis tremelicantes com pauzinhos de madeira “hashi”; poderemos ter andado a correr pelos corredores da casa, envergando espadas e escudos, pensando que somos monarcas de um qualquer reino inventado à pressa; poderemos ter construído novas cidades feitas de peças coloridas que se juntam e depois se destroem e posteriormente voltam a ser usadas para novas construções; poderemos ter esquecido o tempo a cozinhar comidinhas imaginárias com terra e minhocas em cima de folhinhas multicolores. Já se identificam? Mas também não precisamos de ir muito longe, porque decerto também já alguns de nós perderam a noção do tempo em parques aquáticos, onde o nosso corpo é constantemente testado com sensações contínuas de adrenalina; ou já nos mascarámos numa reunião de amigos, porque de repente decidiram que pretendiam fazer uma festa de anos 60; ou afundámo-nos em almofadas mornas a beber um chocolate fumegante e a ler uma banda desenhada de Tardi ou de Hugo Pratt; também com certeza já ficámos horas a fio em frente a um ecrã de telemóvel, com o coração desenfreado, a procurar encaixar peças, a cair a velocidades vertiginosas, num qualquer espaço que aparecesse; e com certeza que já quisemos ser fotografados em exposições imersivas, onde os nossos gestos são o trampolim para uma obra pictórica virtual que, de repente, e segundo a nossa vontade, se plasma bem à nossa frente; e também já devem ter pegado num papagaio de papel e ter desatado a correr prado fora na vontade louca de o ver a voar, juntamente com os nossos saltos desengonçados; e poderia continuar a exemplificar somente mesmo para recordar…
A questão é pensar se, por exemplo, em contextos mais formais e até mesmo na nossa vida diária o fazemos. Seria possível nós transpormos mais esta espontaneidade. Como o fazer, se frequentemente somos assoberbados com tantas solicitações? Como o fazer se, por vezes, a inexpressividade do outro nos atinge como uma flecha?
Claro que nem sempre temos vontade de brincar, nem sempre estamos com o corpo preparado para uma dança enquanto descascamos as batatas para a sopa, ou temos vontade de cantar uma música, enquanto a estamos a preparar, com tanto cuidado, para a nossa próxima sessão de formação. Mas é possível irmos, todos os dias, devagarinho, brincando com as nossas olheiras matinais, com o nosso cabelo indomável no ecrã do computador, visível para vários retratos vivos de rostos surpreendidos. É, sem dúvida, possível, procurarmos possibilidades de trilhos, que não tínhamos visto (e afinal estavam lá), para tornarmos as nossas sessões mais vivas e acolhedoras, usando um novelo para cada participante falar dos seus interesses pessoais, usando uma bola para nos lembrarmos de uma palavra começada por um “G”, usando raquetes de badminton para lançarmos mensagens para outros, que estão na outra ponta, a lerem, procurando aperfeiçoar a respiração e a projeção da voz, usando rodas humanas, que se vão expandindo no meio de um parque repleto de árvores, para compreendermos a noção do espaço e dos limites, usando a nossa voz distorcida para imaginar a possível fala de uma flor envaidecida pelo cuidado de um pequeno príncipe. Tudo isto são formas de brincarmos, se formos por exemplo formadores ou professores, e, se tudo devidamente contextualizado e argumentado, maneiras de revitalizarmos o maravilhamento, o encanto e a espontaneidade, ou a “neotenia” como Stuart Brown dizia.
Para além de nós podermos escolher as formas como podemos brincar no nosso dia a dia, sem magoar o outro que está perto de nós, também podemos reaprender a brincar. Falei, em tempos, aqui neste blogue, numa formação que realizei com os italianos Alessandro Lumare e Simona Lobefaro, fundadores do projeto “Segni Mossi”, precisamente sobre esta recuperação de compreender os sentidos e de os transmitir para o corpo e para um papel e de como, por vezes, as crenças que temos são limitadoras do nosso potencial. Nessa formação, tal como relatei, é possível esquecermo-nos disso, em grupo, com outras pessoas também abertas à experiência, e não voltarmos a dizer “não sei dançar e não percebo nada de desenho”, rendendo-nos pura e simplesmente à brincadeira, à expressão livre do sentir, não nos importando propriamente com as capacidades técnicas e se alguém nos está a avaliar os passos. É uma experiência conjunta, uma exploração contínua a dançar no surpreendente.
“No momento em que se dão as condições que o permitem, as faculdades anquilosadas despertam em todas as pessoas sem excepção.”
Stern, Arno, “Feliz como um niño que pinta”
Fotografia: L.S. #paixoescomsentidos #movimentocriativonanatureza
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