Sentir o Corpo em Dança
- tmpego
- 15 de mar. de 2024
- 4 min de leitura
sentir sentir o corpo olhar o gesto
um traço de cor no espaço
nesse vagar do movimento
num interstício de luz
a dança do corpo
Foi no sétimo andar da Avenida da República em Gaia que conheci a Maria Barroso. Já me tinha encontrado com a Maria há alguns anos no Congresso de Medicina Integrativa, no Porto, experimentando um pouco do que é a dança circular e do seu poder. Agora, encontrávamo-nos pessoalmente num lugar, a Academia Florescerdoser. A guardiã desse lugar era uma outra mulher, a Mariette Capinha.
Vim para este lugar para sentir. Vim para compreender melhor o meu corpo e também os corpos de outros humanos. Vim para explorar, saborear com tempo cada partícula de mim, cada partícula do outro e do Todo.
O corpo trouxe-nos para falarmos sobre o corpo. Acima de tudo, o corpo trouxe-nos para tomarmos uma consciência maior da sua existência, dos seus gestos internos, invisíveis e daqueles que conseguimos percecionar. A mulher que nos guiou à consciência das maravilhas do corpo dançante foi a Maria Barroso.

Iniciamos a viagem com a Maria em círculo, contemplando a leveza e graciosidade dos seus gestos e palavras, daquela bela poesia dançada que preenchia o espaço a transformar-se e a expandir. A jornada iniciava olhos nos olhos, a escutar o coração do grupo a pulsar, a compreender o acolhimento terno das palavras de Maria que bailavam naquela pequena chama da vela ao centro. Seguimos, então, aquele ponto de luz dançante e libertámos o corpo, sentindo a sua ondulação, a sua raiz.
“O corpo é um ser multilíngue(...)”
Clarissa Pinkola Estés, “Mulheres que correm com os lobos”
Os olhos abriam-se e percebiam-se. Estou aqui. Sou. Em presença.
E a viagem começava, dançante e risonha, mesmo que o corpo transportasse dores profundas que só cada uma de nós conhecia ou teria alguma consciência. Por vezes, esquecidas do corpo, caminhávamos e ali parávamos, em silêncio, para compreender a importância do vagar do gesto, a importância da lentidão e do sentir que desabrochava ao toque de uma camélia macia na palma da mão.

Nessa dança, de pés bem assentes no chão, sentíamos o toque do corpo no chão de madeira. A consciência do pé e da sua forma, da sua maneira de contactar o solo. O tocar e o ser tocado. Quem toca quem? Quando a pele toca a pele, quem é tocado?
“O nosso pensamento aprende com o pé a acertar o passo, e assim construímos uma coluna entre o céu e a terra.”
Bernhard Wosien, “Dança: um caminho para a totalidade”
O sentir a terra debaixo dos pés e a conexão com os elementos naturais, com a natureza, perceber a infinitude cósmica que somos. O círculo e a dança… o sentir do círculo, da energia, do movimento subtil e único a transformar-se num só.

As águas lavavam as ruas e a subtileza dos nossos corpos, a nossa invisibilidade. No meio dessa dança louca do vento, reencontrávamo-nos no sétimo andar da Avenida da República. Reencontrávamo-nos com o corpo, com o visível e o invisível de nós em círculo, em dança. Estou aqui, em presença. Sou aqui.
Suportadas pelo círculo humano, o corpo erguia-se, sentindo os rios, essa seiva nutridora até aos braços em expansão, quais árvores humanas. Acolhidas, os troncos eram nutridos por outras árvores, raízes a entrelaçar-se na invisibilidade do colo da terra.
“(…) a dança é uma linguagem que reúne o corpo, a alma e a mente(...)”
Iris J. Stewart “A dança do sagrado feminino: o despertal espiritual da mulher através da dança, dos movimentos e dos rituais”
Naquele sétimo andar da Avenida da República, por detrás das janelas embaciadas, os gestos das copas dançantes da avenida, inspiravam-nos os corpos que rodopiavam ora lenta ora rapidamente pela sala. A loucura do vento e das águas que varriam a cidade traziam-nos à dança em volta do fogo. Mesmo que a dor nos encostasse por momentos, os olhares de quem estava no círculo cuidavam de quem, no seu tempo, se recolhia, em silêncio. Esse cuidado dos corações dançantes em roda foi a cura para que as dores se esvanecessem e, num ápice, todos os corpos se reuniam novamente em pura alegria, em força, pois as raízes eram sólidas e permitiam-nos aqueles voos. Podíamos vergar, sim, mas não quebrávamos.
Essa era a magia do círculo e o poder das raízes de cada árvore que ali movia o seu tronco e os seus ramos numa expansão contínua de cor.
Os ramos são braços ao vento e as águas limpam as dores aprisionadas nos galhos… essas águas escorrem pelas avenidas em direção ao rio que corre, logo ali, na foz, em direção ao abraço do mar.
Eu toco e sou tocado. E um ponto de luz ilumina o lugar e descobre novos recantos, novas perspetivas de olhar. Eu guio e sou guiado. Eu ilumino e sou iluminado e os risos surgem no rosto, gargalhadas, vindas de não se sabe bem onde, mas transformam a relação e aproximam, em ternura.

“O amor e a humanidade começam, onde começa o toque: no intervalo de poucos minutos que se seguem ao nascimento.(...)”
Ashley Montagu, “Tocar – O Significado Humano da Pele”
E o gesto do corpo em dança é uma carícia aos lugares mais recônditos do corpo, é um cuidar lento, com vagar, um massajar moroso da pele invisível que nos habita e não vemos. Dançamos o vento, dançamos as árvores, dançamos a água e a magia dos seus mistérios, dançamos no círculo e fora dele e compreendemo-nos seres vivos dançantes na ciclicidade da vida.

sentir
sentir o corpo
dançar o gesto
pés
raízes
seiva
tronco
braços galhos
árvore
telas de cor no cosmos
sorrisos de coragem
em liberdade
de ser
“A dança é união. União do homem com seu próximo. União do indivíduo com a realidade cósmica.”
Maurice Béjart (prefácio do livro “Dançar a Vida” de Roger Garaudy)
Fotografias: Maria Barroso e Mariette Capinha
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